SESSÃO HORA CURTA

O Cinema entremarés de Valério Fonseca

“Entremarés” é um termo que se refere à faixa de terra que fica entre a maré alta e a maré baixa, um lugar de constante transformação e renovação. O mar desempenha um papel fundamental na filmografia de Fonseca, não apenas como cenário, mas também como um símbolo de infinitude, emoção e dualidade. Assim como as marés, suas narrativas fluem e mudam, mas deixam marcas, convidamos o espectador a explorar as profundezas do cinema de Valério Fonseca através de seus curtas metragens.

A carreira de Valério Fonseca é uma jornada de descobertas, inspirações geográficas e uma profunda exploração da alma humana por meio do cinema. Com raízes fincadas tanto no Nordeste potiguar quanto no cenário carioca, sua obra é uma encruzilhada de influências que resultam em um cinema verdadeiramente único. 

Nascido em Natal, RN, em 1970, Valério Fonseca traz consigo a essência do litoral e a riqueza das histórias nordestinas que permeiam sua filmografia. Sua conexão com o mar é evidente em diversos de seus trabalhos, onde o oceano se torna um elemento simbólico.

A incursão de Valério no mundo da arte começou com o teatro, uma experiência que moldaria seu estilo de direção e narrativa cinematográfica de maneira única. Sua habilidade em compreender a fundo o mundo dos atores é evidente em cada filme, onde as performances se destacam pela autenticidade e profundidade emocional.

 A dualidade entre o trágico e o cômico é uma constante em sua filmografia, refletindo a complexidade da vida e das emoções humanas. Valério aborda essa interação com maestria, criando histórias que provocam risos e lágrimas quase simultaneamente. 

Dona Eulália (2004) – João Carlos Barroso / Valério Fonceca

Os cenários de suas obras, seja nas praias ensolaradas de Natal ou nas ruas movimentadas do Rio de Janeiro, são cuidadosamente escolhidas e se tornam elementos vitais da narrativa. O mar, em particular, é uma presença marcante, simbolizando o infinito e o desconhecido, mas também servindo como pano de fundo para momentos cruciais nas histórias que Valério conta. Em seus filmes documentais, Valério Fonseca eleva o gênero a uma forma de poesia visual. Ele equilibra habilmente o documental com o poético, criando obras que são não apenas informativas, mas também provocativas. Seus documentários não apenas contam histórias, mas também revelam a beleza e a complexidade do mundo ao nosso redor.

Sua perseverança diante dos desafios financeiros e burocráticos que muitos cineastas independentes enfrentam é um testemunho de sua paixão e compromisso com a arte do cinema. 

Recentemente, Valério Fonseca lançou seu primeiro longa-metragem de ficção, “O Alecrim e o Sonho”, financiado pelo Fundo Setorial do Audiovisual (Prodecine 01). Este é mais um marco em sua carreira, que continua a evoluir e a inspirar tanto os aspirantes a cineastas quanto o público. 

Sua carreira é uma jornada de paixão, perseverança e uma busca contínua pela verdade na tela grande. Valério Fonseca nos lembra que o cinema é mais do que entretenimento; é uma janela para a alma humana, é uma ferramenta poderosa para a conexão e compreensão.

Nesta entrevista, ele compartilha insights sobre sua carreira, suas inspirações e os desafios de ser um cineasta independente no Brasil.

Maria Ninguém (2008) – Fernanda Lima

Seu cinema parece ser uma mistura fascinante de elementos potiguares e cariocas. Como você descreveria essa influência geográfica em sua obra e como ela moldou sua perspectiva como cineasta?

R:  Natal e Rio de Janeiro são as cidades onde mais vivi. Inevitável essa influência. Ambas são litorâneas, mas em sua essência são bem diferentes. Está em meus planos filmar sempre nessas duas cidades, escrever sobre as histórias fascinantes do Rio e de Natal. Fortalecer essa influência cada vez mais. Embora o despertencimento seja uma retórica em minha vida e em minha arte, nasci em Natal, passei a infância e adolescência lá e morei anos no Rio, onde me tornei adulto, descobri minha admiração pela sétima arte em Natal, mas no Rio estudei e realizei esse sonho.

Você tem um histórico no teatro, como essa experiência influenciou seu estilo de direção e narrativa cinematográfica?

R: O cinema sempre foi uma arte fascinante pra mim, quando eu assistia a filmes brasileiros na adolescência foi amor à primeira vista. A identificação com nossos costumes, nossa língua, nossa história, foi imediata. Tinha um vizinho que colecionava a revista Cinemim, eu ia na casa dele, lia e relia toda coleção. Com a extinção da Embrafilme pelo governo Collor, o teatro era a única arte mais acessível pra minha geração, fiz vários cursos e comecei a dirigir espetáculos. Com o Teatro aprendi a entender os atores em sua totalidade, porque também era um deles. Li sobre Grotowski, Eugênio Barba, Qorpo Santo, Meyerhold, Stanislavski, Brecht, Boal e procuro usar os ensinamentos desses pensadores no cinema que faço.. Lia muitas peças e fui muito ao teatro. Somente em 1995, ano da retomada, os filmes brasileiros voltaram aos cinemas e pude sonhar de novo com a sétima arte.

Muitos de seus curtas exploram a dualidade entre o trágico e o cômico. Como você aborda essa interação e o que atrai nessa dinâmica?

R:  Se repararmos bem, a vida é tragicômica, às vezes no mesmo dia você chora e dá risada, às vezes na mesma hora, às vezes no mesmo minuto. Não conseguiria separar as duas coisas. Eu vejo o mundo mergulhado nessa dualidade entre a tragédia e a comédia.

Pegadas de Zila (2011)

A presença do mar é notável em alguns de seus filmes, como “Lagoa”, “Maria Ninguém” e outros. Qual é a importância simbólica do mar em sua obra e como ele se relaciona com os temas abordados em seus filmes?

R: A natureza está sempre presente em meus trabalhos, são personagens e influenciam diretamente na trama. Sou nascido em Natal e depois fui para o Rio de Janeiro, duas cidades com fortes relações com o mar. Minha mãe me levava à praia desde bebê. No curta “Pegadas de Zila”, sobre a poetisa do mar Zila Mamede, o mar ainda é mais presente. O mar representa o infinito, já que a gente não vê seu limite. Também uso a praia como local de ensaio, assim como a floresta e as rochas.

Em seus filmes mais documentais, como “Pegadas de Zila”, percebemos uma mudança em direção a uma linguagem mais poética. Pode nos falar sobre essa transição e como você equilibra o documental com o poético em sua abordagem cinematográfica?

R: Zila Mamede nasceu no sertão da Paraíba, nunca tinha visto o mar, achava que o canavial era o mar e seu pai dizia: “Isso não é o mar, isso é um canavial”. Zila faz inúmeros poemas sobre o mar, porém,  infelizmente, morreu afogada no mar de Natal. Esse curta me deu muito prazer em realizar, com uma equipe maravilhosa e a atriz Rosamaria Murtinho que foi essencial para o filme. O cinema como estado de poesia de Andrei Tarkovski e de Alain Resnais são influências nessa mudança de direção..

Quais são os principais desafios que você enfrenta como cineasta independente no Brasil e como você os supera?

R: Há muitos brasileiros que atentam contra nosso cinema por ignorância e preconceito. Isso dói muito mais do que passar por várias restrições econômicas e isso é fato. Muitos mestres do cinema brasileiro vivem com dificuldade hoje em dia, imagina nós que estamos começando. São incontáveis as vezes que andei a pé quilômetros para economizar o dinheiro da passagem ou ir a um bar e não consumir nada, pedir dinheiro emprestado, vender objetos e livros. Teve uma época que exibiam muitos curtas em bares e me pediram “Lúcia e a mala” para exibir num bar badalado no Rio de Janeiro. Eu tinha 10 reais na carteira, recebi uma comanda ao entrar, falei que era o diretor do filme na entrada, nada consumi, nem água, mas na hora de sair queriam que eu pagasse 20 reais, mesmo meu curta gerando lucros para eles. Eu só tinha 10 reais. Fui impedido de sair. A organizadora do “festival” veio e disse que não podia fazer nada, e eu retido como um estelionatário na porta do bar. Se tivesse 20 reais, pagava esses putos, mas só tinha 10 reais. Dona Lucia Rocha, mãe de Glauber era jurada, viu tudo acontecer e só saiu de lá quando resolveram me liberar. Desde esse dia, Dona Lucia Rocha passou a me tratar com tanto carinho que valeu a pena o ocorrido. Esse foi só um exemplo das dificuldades de um cineasta independente. A paixão pelo cinema faz a gente seguir com força e superar essas crises.

Como você escolhe os temas e histórias que deseja contar em seus filmes? Existe um processo específico de seleção de projetos?

R: Não penso nisso, as histórias simplesmente vêm. Nada é pensado. Estar atento aos acontecimentos da vida e sensibilizar-se com a luta diária do povo é muito importante. Observar e ouvir sempre o que as pessoas têm a dizer. Ando muito a pé e isso me ajuda nessa interação. Quando estudei roteiro em Cuba, meu maestro, Eliseo Altunaga, dizia que sempre há um lampejo antes da ideia. Eu acredito nisso. Um lampejo tão luminoso que só sairá de sua mente quando você fizer esse filme. Na minha cabeça tem várias ideias que já foram lampejo e no meu computador tenho vários roteiros escritos que já foram ideias da minha cabeça. Os temas vêm dessa observação e da urgência de falar sobre tal assunto. Um país como o Brasil o que não falta é história. “Chapada” por exemplo veio depois que li uma notícia no jornal, “Dona Eulália” eu ganhei um livro de contos de Arthur Azevedo, “A maldição de Berenice” quando estava lendo Edgar Allan Poe. Nada prevê mais o futuro que o cinema.

Você fundou a Ponta Negra Filmes. Pode compartilhar um pouco sobre a missão e visão da produtora e como ela contribui para o cenário do cinema independente no Brasil?

R: A partir da fundação da Ponta Negra filmes em 2015, na minha cidade Natal, foi quando comecei a me profissionalizar, ganhei meu primeiro edital de longa, com “O Alecrim e o sonho”, meu primeiro cachê como roteirista e diretor, emiti notas, tenho contadora, conta empresarial, pagamos salários aos profissionais, prestadores de serviço, impostos municipais, estaduais e federais, mas também aumentaram as responsabilidades, a burocracia, a competição, enfim, tenho saudade dessa época de curtametragista independente, até porque os desafios e as dificuldades de um diretor/roteirista/produtor profissional não diminuíram.

Parabéns pelo lançamento de seu primeiro longa-metragem de ficção, “O Alecrim e o Sonho”. Como foi a jornada de fazer um longa-metragem e como você se adaptou às demandas e desafios desse formato, especialmente um filme com recursos do FSA? Pode nos contar mais sobre a trama e a mensagem que deseja transmitir com este filme?

R: Muito Obrigado. Foi uma jornada dura. Fazer o primeiro longa não é fácil. Não digo pelo trabalho muito mais intenso e demorado. Isso me agrada. Amo o cinema. Como se realiza o cinema. As etapas de construção de um filme. Adoro a ideia de recomeçar um novo filme e escrever roteiro é catártico. Escrevi em 2015 o roteiro deste longa. Essa etapa, embora dolorosa(até meu nariz sangrava) foi emocionante. Escrevia nas madrugadas, entre 3h e 11h da manhã.

Quando terminei foi um gozo, mas aí começaram outros desafios, como inscrever nos editais de fomento direto, no caso, o Prodecine 01. Nessa época tinha defesa oral. Após essa etapa, vem toda documentação imposta pelo edital. Foi quase um ano para receber o recurso. Toda sexta a Ancine mandava uma diligência. Consegui resolver tudo a contento e o recurso entra na conta da Ponta Negra.

Fui seguindo minha tradição e mesmo com recurso, continuei andando a pé. Devo ter ido umas 60 vezes ao Alecrim a pé para pesquisar as locações, conhecer pessoas do bairro e arranjar parcerias. Para alugar o imovel que seria do personagem Vicente, eu ficava na frente do prédio e quem ia alugar eu dizia que ali rolava assalto todo dia. Conseguimos alugar. Nesse filme, fui escritor, diretor, preparador de elenco, produtor, até assistente de montagem e atualmente estou distribuindo, me comunicando com cinemas, mostras e festivais.

A burocracia da Ancine continua. Assim aprendo cada vez mais sobre essa arte tão sonhada, mas que a realidade é bem diferente. A ideia do filme ficou na minha cabeça por anos até escrever o roteiro desse homem que tinha sonhos lúcidos. Estreamos no maior festival da Índia, o IFFI GOA, fomos convidados eu e o protagonista do filme, Fernando Teixeira, para a premiére. Esse momento de celebração vale toda a luta.

O Alecrim e o Sonho (2022) – Fernando Teixeira

Quais são seus planos futuros no mundo do cinema? Há algum projeto específico em que você esteja trabalhando atualmente ou que tenha em mente para o futuro?

R: Sim. Tenho escritos três roteiros, um deles faz parte da trilogia da maturidade, junto com o “O Alecrim e o sonho”, intitulado “A orelha de Van Gogh”. Também tenho “Não olhe para trás”, um road movie pelo interior do RN e “Bela Época” baseado nos contos de Arthur Azevedo e se passa na virada do século XIX para o XX. Estou com a ideia do terceiro filme da trilogia da maturidade para começar a escrever. Também tenho um projeto para uma TV comunitária em Natal, mas é segredo ainda.

Como ser um cineasta independente emergente que deseja seguir uma carreira no cinema, especialmente considerando a cena cinematográfica brasileira?

R: Não deve ter regra pra isso. Penso que nunca desistir é um bom começo.

Na sua visão, qual é o significado mais profundo da arte cinematográfica e como ela se relaciona com as questões fundamentais da existência humana?

 R: A arte existe para dar conforto às pessoas, fazê-las compreender um pouco sua cultura e a alma de seu povo.

O cinema e a arte te proporcionaram muitas experiências enriquecedoras, mas gostaria de saber, do seu ponto de vista, o que você sente que elas retiraram de você ao longo de sua jornada como cineasta?

R: O cinema e a arte em geral me fizeram quem eu sou hoje, paciente, corajoso e resiliente, mas falta dinheiro para ter uma vida mais confortável. 

Por último, a palavra “expectação”. O que quer dizer para você?

R: A expectativa gera frustração, ainda mais no Brasil, país golpeado por colonizadores, injusto, violento. Até hoje vivemos incertezas. Quero continuar trabalhando, ter saúde e boas parcerias. A velhice me assusta um pouco, pois comecei um pouco tarde, dirigi meu primeiro curta aos 32 anos. Como você mesmo falou, ser um cineasta independente emergente aos 52 anos é complicado, nessa idade as pessoas estão se aposentando, e olha que trabalho com arte há 30 anos. Tenho que trabalhar até o fim e vou adorar.

Curta cada momento do emocionante cinema de Valério Fonseca. Acesse Playcimm.com e assista todos os curtas-metragens do diretor até dia 27 de outubro de 2023.

Ficção:
Dona Eulália (2004)
Lagoa (2005)
Lucia e a mala (2007)
Maria Ninguém (2008)
Chapada (2010)

Documentários:
A Maldição de Berenice (2010)
Céu de Dor (2010)
Pegadas de Zila (2011)
Memoria de La Preciosidad – Documentário realizado em Cuba (2012)
Sonho e Silêncio (2012)
Mobilidade (2015)
Sair do Caos Diário é Dar Amor à Própria Alma (2016)

Primavera de 2023

5 thoughts on “SESSÃO HORA CURTA

  1. Admiro muito tanto o trabalho de Valério Fonseca como a pessoa Valério!! Numa luta incessante ele já foi com seus filmes a várias partes do mundo e com sucesso. Vou torcer sempre para que ele vá conseguindo as glórias que merece. Parabéns Valério!!

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